segunda-feira, 15 de setembro de 2008

José Luandino

N'A cidade e a infância, José Luandino Vieira data os contos com dia, mês e ano, demonstrando que os escreveu numa só jornada. (Os textos foram organizados em ordem cronológica crescente.) Em dois desses dias escreveu dois contos em cada. Quatro contos, 40% do livro, em dois dias. Isso também diz um pouco, paradoxalmente, do processo criativo do autor. Ao mesmo tempo em que a linguagem é filtrada em sua máxima pureza para as páginas da obra, a velocidade com que o escritor opera essa ação é decisiva para manter intactas a espontaneidade e a verossimilhança. O espontâneo é derivado direto da captura em vida da matéria febril que os homens exsudam em seus movimentos, em suas falas. Isso é próprio do conto que repete o título do livro, onde um menino ardendo em febre, seriamente doente, caminha para a morte. Mesclam-se ao seu delírio o pai, a irmã, o irmão mais velho. As recordações. As idas ao cinema onde se apaixonara por atrizes e, da impossibilidade, tivera de carregar a dor maior que a causada pelo real: "São feridas que lhe doem, feridas de celulóide, que não cicatrizam mais". Conto memorável, como uma estada entre a vida e a morte, passagem da qual não há salvação, mesmo se por ventura alguém se safou.

Chama a atenção também A fronteira do asfalto, quando chega o momento, já adolescentes, em que um menino negro e uma menina branca são obrigados a desmanchar a amizade que os unira desde pequenos. Não mais crianças, aproxima-se o instante em que a juventude os porá no encalço de relações e a família da menina não deseja que ela corra esse risco com ele. Para ele, se ela relacionar-se com outro pode ocorrer ciúme, ou, mesmo que não a deseje, a desconfiança, cabível, de rejeição racial. Um mora numa margem da estrada de asfalto, tornado gueto, habitada só por negros. Outra, na margem oposta da estrada que atravessam, conversando, margem com melhores casas, jardins, e brancos, e só brancos. Pressionada pela família a afastar-se do menino, chora no quarto e, negando-se a discutir a questão (dá para discutir?), apenas obedece à mãe: "Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só". De tanto pensar e martirizar-se acerca do ciclo mortal em que suas vidas se encontram, o menino não suporta aguardar o dia seguinte, na escola, quando então poderia falar com a menina sobre o assunto, infindável. Vai a casa dela de noite mesmo. Não consegue entrar. A polícia surge, provavelmente chamada. Ele, assustado, corre, escala o caminho até a estrada de asfalto e, num escorregão, estatela-se, bate a cabeça, morre. "Estava um luar azul de aço." O universo, infinitamente indiferente. E os homens, claro: "De pé, o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído".

50 mil euros do Prêmio Camões, que José Luandino Vieira recusou, ficaram com o fisco português. A outra metade, do governo brasileiro, ficou com a Secretaria da Fazenda. Saberão fazer bom proveito, para eles, como há muito fazem.

O AUTOR
JOSÉ LUANDINO VIEIRA, nascido a 4 de maio de 1935 em Portugal, é cidadão angolano pela presença ativa no movimento de libertação nacional e contribuição no nascimento da República Popular de Angola. Passou a infância e a juventude em Luanda onde freqüentou e terminou o ensino secundário. Trabalhou em diversas profissões até ser preso, em 1959. Conheceu a liberdade, relativa, em 1972, em regime de residência vigiada, já em Lisboa. Iniciou então a publicação da sua obra. É membro fundador da União dos Escritores Angolanos, entre 1975 e 80. Foi secretário-geral adjunto da Associação dos Escritores Afro-asiáticos, de 1979 a 1984; e de novo Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, de 1985 a 1992. Desde então se dedica somente à literatura, recluso. Entre seus 15 títulos publicados, destacam-se ainda os romances Nosso musseque (2003) e A vida verdadeira de Domingos Xavier (2003), e os contos de Macandumba (2005) e Velhas estórias (2006). Seu mais recente lançamento foi o primeiro volume de uma trilogia, De rios velhos e guerrilheiros - O livro dos rios (1a e 2a edições, 2006; 3a edição, 2007).

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